segunda-feira, 28 de abril de 2025

A Bênção da Inutilidade

 



Não há nada mais INÚTIL que um bebê recém-nascido! Se você pensar logicamente, racionalmente, se o seu olhar sobre a questão a partir de uma ética capitalista, em que se analisa a valia de algo baseando-se no “lucro” que algo pode nos trazer, esqueça, pois bebês são exatamente a antítese do pensamento de ganhar. Seus recursos diminuirão, assim como suas noites de sono, e não se engane, suas prioridades mudarão, e não haverá argumentos justificáveis ​​para tantos gastos (pelo menos não a curto prazo).

 

Bebês são amados pela sua identidade, pelo quê e por quem são e não pela sua utilidade, bem como deveriam ser as relações decorrentes do amor, ou seja, difíceis de explicar, mas avassaladoramente verdadeiras e inegavelmente reais. Isso é absolutamente o inverso de tudo que é norteado pela sua utilidade, pelo que é vantajoso ou lucrativo, como nosso trabalho por exemplo, onde em que nosso valor está diretamente relacionado com a nossa produção, em nossa contribuição, em como nos mostramos úteis.

 

Eis a bênção da inutilidade: validar relações que se baseiam na afetuosidade, no amor, em coisas que permanecem e que geralmente não são tangíveis, em meio a um tempo tão marcado por mudanças e superficialidades. Você é amado ou apenas é útil? Você ama ou apenas satisfaz suas carências? Não seria um exagero afirmar que, quanto menos utilidade e interesses permearem uma relação, mais autêntica ela será. O valor de uma relação seria melhor avaliado naquilo que estamos dispostos a abrir mão por ela, não que estamos interessados ​​a perder, e não na expectativa do que podemos ganhar, ou seja, o preço que estou disposto a pagar por algo, mostra o valor que aquilo possui para mim. 

 

 Esse parâmetro (da inutilidade) nos serve para tantas coisas, para tantas áreas da nossa vida, até mesmo para a nossa espiritualidade. Os religiosos frequentadores dos balcões de autoajuda emocional sob o nome de “igreja”, apregoam um Deus que faz, que realiza, que resolve, ou seja, que é ÚTIL! E esse discurso em países subdesenvolvidos, onde as pessoas não têm recursos para seu autosustento, funciona que é uma beleza, afinal, quem não quer uma solução “mágica” para suas mazelas? Tire a utilidade deste "deus" fabricado à nossa imagem conforme a nossa semelhança, e assistiremos ao êxodo dos fiéis.

 

Se voltarmos nossos olhos para as páginas da Escritura Sagrada, em especial para os Evangelhos, veremos que a maior contribuição do Cristianismo para a teologia moderna é a revelação de Deus como Pai! Além do Cristo revelar-se como Filho de Deus, ele diz que o Pai é um “Pai Nosso”, e que ele é o primogênito de muitos irmãos, e isso é tão verdadeiro e poderoso que, qualquer religião pode  arrogar-se de levar os as pessoas a algum(ns) deus(es), mas disse Jesus “ninguém vem ao Pai, a não ser por mim” (João 14.6). A relação com Deus como Pai passa invariavelmente pela Revelação de Jesus Cristo, o seu Filho, nosso Senhor e também nosso irmão mais velho.

 

Se nós, com todas as imperfeições, somos capazes de basear nossas relações essenciais (como a que temos com nossos filhos) em amor, que dirá nosso Pai que está no Céu, como nos olhará? Não há nada que eu faça para que Ele me ame mais, ou menos, porque na espiritualidade cristã centrada no Evangelho, Deus não nos vê pela nossa utilidade, ele nos vê pela nossa identidade, o nosso DNA revela que somos filhos de Deus. Antes de Jesus iniciar seu ministério aqui na Terra, enfrentando todo tipo de agrura, escândalo, traição, culminando em sua morte na cruz do Calvário, Deus Pai o presenteou com algo realmente valoroso que o capacitaria para tudo o que viria pela frente, o Pai lhe deu autoridade, reafirmando a sua identidade e o Seu amor por ele, sem que nada "útil" ainda tivesse sido realizado. Por ocasião em que Jesus foi batizado por João Batista, nas águas do rio Jordão, diz a Palavra de Deus:

“  Então, uma voz dos céus disse:  Este é o meu Filho amado, em quem tenho prazer.  ” (Mateus 3.17) 

     

    Quem sabe não seja isto que nos falta? Somente a verdade da nossa identidade nos revelará nosso real valor, para além das opiniões dos outros, ou do jugo de ter que servir para sermos amados. Pelo contrário, somos amados, e isto é tudo o que precisamos para descobrir e viver o nosso real propósito de vida.



Nota do autor: esse texto eu dedico ao meu filho Davi, em quem minha alma muito se compraz, e que no auge dos quase dois meses de vida, sente-se absolutamente amado.

domingo, 9 de setembro de 2018

Memórias do Cárcere



Hoje resolvi rever um conhecido, daqueles que admiramos mas que pelos afazeres do cotidiano, acabamos por nos distanciar. E como em uma roda de bate papo, minha alma sentou-se com João, o Batista, e outro amigo em comum, o Consolador. Na verdade, é apenas por causa do Consolador, que estes encontros tornam-se possíveis e reais, Ele vivifica tudo o que está no Livro, fazendo da letra, Palavra de Deus para nós.

Visitei João não no ápice do seu ministério, quando ele honrosamente batizou o Messias esperado,  mas no crepúsculo da sua existência, quando aprisionado por Herodes Antipas, ele aguardava um desfecho por certo obscuro. O Batista havia mudado. Não sei se os anos no deserto, ou a solidão no seu exílio, mas o homem que encontrei não tinha a postura de um profeta,  continuava sisudo, mas já sem a segurança e firmeza que caracterizavam sua voz, bem como seu atos. Ele estava tomado pelo medo de descrer. Ele havia depositado toda sua confiança em seu primo, Jesus de Nazaré, em quem julgava estar destinado ser o Ungido, aquele que inauguraria o Reino de Deus, e que conforme cria, livraria Israel do julgo romano, colocando a nação em um lugar de honra e domínio sobre seus adversários.

-    Será que estive enganado todo esse tempo? Indagava ele. O coração do Batista, outrora cheio de fé e esperança, agora dá a lugar a um coração triste, angustiado naquela alcova sombria e fétida, sem a convicção de que a Promessa de fato se cumprira em Jesus, ou se ele era mais um dos muitos falsos messias, que surgiam vez ou outra pela Palestina, o que faria dele mesmo, um falso profeta. Mas não podia ser, os sinais estavam se cumprindo em Jesus, tantas vezes ele mesmo ouvira sua mãe contando a história da miraculosa concepção de Maria, ele o conhecia, sabia que Jesus era diferente, e que o Eterno havia confirmado que ele era o seu Ungido, na ocasião do seu batismo. Apesar de tudo isso, Israel continuava sendo mais uma província subjugada pelo Império Romano, o povo sofria, e ele sabia disto. Será que as mãos do Eterno estavam encolhidas? Será que Ele havia rejeitado perpetuamente o seu povo? Será que Ele o havia rejeitado também? Tudo fora feito conforme o Espírito do Senhor havia ordenado, o Batista tinha consciência que havia falado sua mensagem, ou melhor, que sua vida encarnava a mensagem que ele profetizou.

Não podemos subestimar o poder que aquele cárcere impunha sobre a alma de João. Ele sentia-se fracassado, estava só, isolado, não mais conseguia sentir as mãos do Eterno o guiando naquele lugar. O único pensamento que lhe vinha a mente era "se ele fosse de fato o Messias, porque não nos libertou, porque não me libertou....". Para ele, o maior problema não era estar preso, não era saber que seu fim se aproximava, mas sentir que havia falhado, que talvez tudo que estava sofrendo fosse em vão, que Jesus não era o Messias. Cercado por um silêncio sepulcral, não só ao seu redor, mas sobretudo em seu coração. O que estava acontecendo? Nenhuma palavra, nenhuma visita, nenhuma resposta, nada.

Em meu coração, pergunto ao Consolador: conheço a história, sei da importância de João na narrativa bíblica, da sua intrepidez que o fazia semelhante à Elias, mas ao vê-lo assim, deprimido, claudicante em suas convicções, o que lhe faltava?

-    Fé! Respondeu-me o Consolador. João viu o que todos antes dele gostariam de presenciar, o surgimento do Messias, João o conhecia, pode batizá-lo, viu a chegada do Reino de Deus, mas ainda lhe faltava fé, para de fato entrar no Reino de Deus e o Reino nele. Ele precisava aprender que o Reino chegou, mas sem visível aparência.

Toda a melancolia da cena é interrompida com a chegada dos discípulos que João enviara a Jesus, para questioná-lo. Eles conseguem, por um momento ter acesso ao cárcere de João, e cheios de euforia começaram a tagarelar das coisas que haviam ouvido e visto de Jesus:

-    Mestre, os cegos veem, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam. Mestre é ele, é ele.
-    Mestre, o Eterno é com ele, o povo o segue, jamais vimos tantos sinais.
-    Ele fala com autoridade jamais vista.
-    É como o senhor nos ensinou, ele é o Messias, o Espírito do Senhor o ungiu, aleluias!

Neste momento, um sentimento de alegria e contrição tomam conta do coração de João, e como se lhe abrisse o entendimento, ele ajoelha-se e ergue as mãos aos céus, e com os olhos cheios de lágrimas proclama: "- Yeshua Hamashiach, Yeshua Hamashiach!" (Jesus é o Messias, Jesus é o Messias!). Em fração de segundos, ele se lembra de suas próprias palavras: "convém que ele cresça e eu diminua...", de fato, foi como se a alegria do coração de seus discípulos transbordasse ao ponto e encher a alma de João, fazendo compreender que o Reino de Deus se inaugura no coração dos homens, e que só quem experimenta essa libertação, jamais seria novamente escravizado por nenhum jugo humano. Pouco depois, os guardas que o vigiavam, expulsaram seus discípulos dali. Mas, os dias, semanas, e meses que se seguiram, testemunharam um novo homem surgir, não em sua aparência, mas em postura, seus olhos brilhavam, o profeta voltou.

Herodes, para satisfazer os caprichos de sua amante, ordena que matem João, e tragam sua cabeça em uma bandeja. Três soldados seguem para executar a ordem que receberam, mas ao entrar na cela, João os recebe de pé, os olha diretamente nos olhos e diz: "façam o que lhes foi ordenado, mas saibam, o Filho de Davi vive, e seu reino será eterno". Herodes teve o que queria, mas ao saber das palavras de João, temeu.

O Consolador mostrou-me a fé do Batista, que não mudou as circunstâncias, mas sim a ele próprio, fé que o libertou, fazendo seu coração livre, poderoso, inabalável. João pode ir além daquelas paredes que encarceravam seu corpo, mas não seu espírito, seus olhos, mas não sua visão, seu cárcere presente era transitório, e sua morte lhe abriu as portas para a eternidade. João estava além de qualquer prisão.

Ao terminar a leitura, fiz um últi

mo pedido ao Consolador:

- Dá-me uma vida com motivos e convicções tais que me façam perder a cabeça se preciso for, para ser inteiro, em qualquer circunstância. Amém, amém.

sexta-feira, 3 de março de 2017

Jesus pregou o Reino e em seu lugar veio a igreja



Esta é a espiritualidade de Jesus, base sobre a qual se construiu o edifício histórico do cristianismo. Em primeiro lugar, fez-se uma tradução da experiência de Jesus, e ela foi consignada nos quatro evangelhos. Em seguida criaram-se comunidades que tomaram Jesus como referência de vida e de sentido. Nasceram as igrejas, ritos sacramentais, credos doutrinários e códigos de conduta ética e moral. Lentamente se construiu o cristianismo como corpo histórico.

Mas atentemos bem. Jesus não anunciou uma Igreja. Ele anunciou o Reino de Deus e a transformação interior(conversão). Posteriormente, no seu lugar, surgiu a Igreja como comunidade de fieis, que crêem em Jesus. Essa evolução é quase fatal e férrea. Mas ela é outra coisa. Não pode ser identificada como a experiência original de Jesus. Ela está subjacente à Igreja e às suas instituições, mas não se identifica com ela. Uma coisa é a fonte de água cristalina.Outra coisa é sua canalização para o aproveitamento humano. O cano de água não é a água.

Infelizmente, muitas vezes os cristãos identificaram o Reino de Deus com a Igreja, e Jesus com o Papa, com o bispo ou com o padre. Essa identificação representa uma patologia e uma decadência. O meio se transforma em fim. A Igreja, em vez de se apresentar caminho de salvação, se apresenta, erroneamente, como a própria salvação, como se a imagem do pão fosse o próprio pão. 

As autoridades eclesiásticas, em de vez de serem representantes de Deus e do povo religioso, ocupam o lugar de Deus pela reverencia e obediência total que exigem. A Igreja deve ser como a vela acesa. O que ilumina é a chama, não a vela. A vela é suporte para que a chama queime, irradiando luz e calor. A vela é a Igreja, e chama é Jesus e sua experiência fundadora. 

Mas o que conta fundamentalmente no cristianismo em suas múltiplas igrejas é a experiência singular de Jesus de Nazaré. Nós seremos herdeiros de Jesus não por habitarmos a instituição cristã e seguirmos seus preceitos. Seremos herdeiros se tentarmos continuamente refazer a experiência de Jesus, se entrarmos no movimento de Jesus, nos sentirmos filhos e filhas de Deus, e , ao mesmo tempo, olharmos os outros também como filhos e filhas, tratando-os de dentro de cada um e fazendo de cada mulher de cada homem seus filhos e filhas, nossos irmãos e irmãs. 

Se a religião cristã, em suas várias formas eclesiais e institucionais, produz continuamente essa experiência, ela se transforma em caminho espiritual. Ela representa a espiritualidade pura. Mas se ela não transforma a nossa interioridade, se continua a ser apenas religião de consolo e meio de salvação por medo da perdição, ela se transmuta em ópio. Se permite que seus ritos e símbolos sejam usados e abusados no mercado religioso, especialmente pela grande mídia, para apenas suscitar comoção e não aquela transformação interior decorrente da experiencia do Deus vivo e do engajamento pela justiça, pela paz e pela integridade do Criador, ela se transforma em simples fetiche. Podemos até, com a religião, pecar contra Deus, e pela religião afogar a espiritualidade.

Por isso é sábia a prescrição do Decálogo ao coibir, no segundo mandamento, o uso do santo nome de Deus em vão. Talvez seja o mandamento contra o qual as religiões mais pecam, especialmente as Igrejas mediáticas. Nas rádios e nos programas de televisão é Jesus para cá e Jesus para lá, sem qualquer sentido de reverência e de moderação. Banaliza-se o sagrado, como se Deus, Jesus e as Escrituras fossem uma moeda circulante para todas as finalidades. O nome de Deus passa a ser usado para os interesses dos homens, não para os interesses de Deus, em dissonância com a natureza do sagrado e do espiritual. 


Texto tirado do livro " ESPIRITUALIDADE - UM CAMINHO PARA A TRANSFORMAÇÃO" - Leonardo Boff - Editora Sextante.