Aquele era para ser um dia comum, como tantos outros dias comuns na minha vida. Saí de manhã para o trabalho, atrasado como
sempre, decidi tomar café da manhã na rua. Antes de chegar no prédio em que
labuto, passei em uma padaria próxima, cumprimentei o balconista, pedi uma média de
café com leite e um pão com queijo minas.
Um sujeito ao
meu lado, depois de ouvir meu pedido fala para o atendente: “faça o mesmo pra
mim também”. Então, animado pelo nosso gosto em comum por pão com queijo minas,
ele resolve puxar assunto, mas logo segunda-feira pela manhã? Penso resignado “deve
ser algum tipo de teste para a minha paciência”. Como teria que ficar por ali
alguns minutos, resolvi então dar atenção ao meu ocasional colega de desjejum.
Ele começa quase que por uma necessidade compulsiva a me contar da sua vida. Fala
que seu colesterol está alto, sua ex-mulher resolveu entrar na justiça pela
guarda do seu papagaio de estimação, e que ele até gostava da sua recém
solteirice, mas odiava a idéia de ter que fazer todas as refeições sozinho
(pensei comigo, percebe-se!). Porém, enquanto ele me contava do seus
infortúnios, uma coisa me chamou atenção: ele me disse que era cristão, mas que
tinha deixado a igreja e agora peregrinava sozinho em sua fé.
Eu
disse para ele que também sou cristão, mas que diferente dele, eu acredito que
ninguém deve vivenciar a sua espiritualidade longe do convívio de outros que
partilham a mesma fé, e que a experiência cristã dá-se na coletividade. Ele me
respondeu: “também já pensei assim”. Ele começou a me contar que seu isolamento
deu-se após sua separação, onde ele começou a viver dissolutamente, me contou de algumas certezas que ele considerava inabaláveis como o amor de Deus, e sua
intervenção na Criação, por vezes claudicaram. Disse que a Bíblia já não
lhe despertava o interesse de outrora, e que sua coleção de livros teológicos,
hoje servia como apoio para o pé da cama que quebrou. Não pude mais ficar indiferente,
disse-lhe que eu lecionava na igreja, por isso também tinha muitos livros de
teologia, e que a Bíblia me servia como fonte inspiradora e que norteava as
minhas decisões. Agora, cheio de compaixão, disse para ele: “nosso encontro não
foi uma coincidência, você precisa se levantar, se arrepender e voltar para
Jesus”. Meu ilustre desconhecido, começou a me dizer: “você não entendeu, eu
não disse que estou desviado da fé, eu apenas não estou na igreja”. Quantas
vezes em minha vida como cristão e pregador, eu ouvira tais argumentos, e logo,
começamos a discutir sobre a possibilidade de uma espiritualidade solitária. O
mais estranho era que para cada colocação minha, ele contra-argumentava como se
conhecesse todas as minhas “armas”.
- Amigo, o nosso papo está ótimo,
mas preciso ir trabalhar. Gostaria de reencontrá-lo para terminarmos nossa
conversa.
- Também preciso ir, e pode ter a
certeza que nos reencontraremos.
- Quem é você? Qual é o seu nome?
(Perguntei a ele)
- Me diga quem é você, ai saberá
o que precisa sobre mim.
Como
se me caíssem as escamas dos olhos, fitei o sujeito nos olhos, e percebi que
tinha a mesma aparência que eu, mas com os cabelos um pouco mais brancos, barriga
mais saliente, e possuía um olhar calmo. Ao perceber meu espanto, ele se
antecipou e disse:
- Sim, sou você daqui a alguns
poucos anos.
O
que mais me incomodou não foi a aparência que poderia estar um pouco melhor cuidada, e sim a calma inquietante com que ele falava da sua vida afastado da
igreja. Logo eu que desde novo fui um exemplo para muitos, pregador,
professor, formado em Teologia, casamento exemplar. Como essas coisas
aconteceriam comigo?
- Sei que você deve estar cheio
de perguntas (disse ele), e a mais importante delas é: o que posso fazer para
mudar o meu futuro? Bem, eu poderia te dizer inúmeras escolhas erradas que você
fez, suas culpas, falar do seu jeito impulsivo de agir, mas de nada adiantaria. Suas
escolhas são parte do que você é, ou somos (ele ri).
- Mas como você pode estar em
paz, sabendo das realidades espirituais, sabendo que seu afastamento o tornou
mais vulnerável aos seus instintos carnais, e que desta forma você estará cada
dia mais distante de Deus?
- Você esqueceu-se de uma coisa:
Ele vive! E o Cristo que você sempre pregou, o Seu cuidado, o Seu amor, Sua Graça, hoje são para mim realidades empíricas. Exatamente nos momentos em que eu caí, vacilei, tornei-me menos “elogiável”, o
Cristo que você prega, tornou-se uma realidade para mim, tornou-se o meu
sustento. Certamente só quando percebi todas as mazelas ocultas no meu próprio
coração, pude experimentar as riquezas da Sua Graça.
- Vá trabalhar (disse ele), vá
viver, mas para que lhe sirva de consolo, saiba: sou d’Ele. Não sei existir fora
d’Ele, no mais sei que tudo Ele fará. Mesmo que eu não seja exatamente como você
planejou, sou consciente do pecado que me habita, bem como da Graça que me
sustenta. E essa Graça d’Ele, pude experimentar através de pessoas, que
encontrei pelo caminho, encontros inesperados, gestos de generosidade,
compreensão, acolhimento, mãos estendidas, abraços que consolam, gente, apenas
isso: gente! A esses eu aprendi a chamar de irmãos, de minha igreja.
Levantei-me
e o cumprimentei, meus compromissos eram inadiáveis. E com os olhos marejados
despedi-me de alguém que certamente eu veria novamente. Ao sair da padaria,
caminho alguns passos, olho para trás e vejo apenas a fachada branca, com
letras em azul: Padaria Pão do Céu.